terça-feira, 17 de novembro de 2009

ANÁLISE DA SOCIEDADE



Este documento foi feito pela UJS Bauru, com trechos retirados de livros, que estão relacionados ao final de cada trecho.

A ALIENAÇÃO
Alienação no Consumo.

O ato do consumo é um ato humano por excelência, no qual o homem atende a suas necessidades org6anicas (de subsistência), culturais (educação e aperfeiçoamento) e estéticas.
Quando nos referimos a necessidades, Não se trata apenas daquelas essenciais à sobrevivência, mas também das que facilitam o crescimento humano em suas múltiplas e imprevisíveis direções e dão condições para a transcendência. Nesse sentido, as necessidades de consumo variam conforme a cultura e também dependem de cada indivíduo.
No ato de consumo participamos como pessoas inteiras, movidas pela sensibilidade, imaginação inteligência e liberdade. Por exemplo, quando adquirimos uma roupa, diversos fatores são considerados:
- Precisamos proteger nosso corpo; ou ocultá-lo por pudor,ou "revelá-lo" de forma erótica;
- Usamos de imaginação na combinação de peças, mesmo quando seguimos as tendências da moda;
- Desenvolvemos um estilo próprio de vestir;
- Não compramos apenas uma peça, pois gostamos de variar as cores e os modelos.
Enfim, o consumo não-alienado supõe, mesmo diante de influências externas, que o indivíduo mantenha a possibilidade de escolher autônoma, não só para estabelecer suas preferências como optar por consumir ou não.
Além disso, o consumo consciente nunca é um fim em si, mas sempre um meio para outra coisa qualquer.

O Consumo alienado

Num mundo em que predomina a produção alienada, também o consumo tende a ser alienado. A produção em massa tem por corolário o consumo de massa
O problema da sociedade de consumo é que as necessidades são artificialmente estimuladas, sobretudo pelos meios de comunicação de massa, levando os indivíduos a consumirem de maneira alienada.
A organização dicotômica do trabalho a que nos referimos - pela qual de separam a concepção e a execução do produto - reduz as possibilidades de o empregado encontrar satisfação na maior parte de sua vida, enquanto se obriga a tarefas desinteressantes. Daí a importância que assume para ele a necessidade de se dar prazer pela posse de bens. "A civilização do trabalho, mas do consumo e do ” “bem-estar”, o trabalho deixa, para um número crescente de indivíduos, de incluir fins que lhe são próprios e torna-se um meio de consumir, de satisfazer as “necessidades” cada vez mais amplas."
Vimos que na sociedade pós-industrial a ampliação do setor de serviços desloca a ênfase da produção para o consumo de serviços. Multiplicam-se as ofertas de possibilidade de consumo. A única coisa a que não se tem escolha é não consumir!
Os centros de compras se transformam em "catedrais do consumo", verdadeiros templos cujo apelo ao novo torna tudo descartável e rapidamente obsoleto. Vendem-se coisas, serviços, idéias. Basta ver como em tempos de eleição é "vendida" a imagem de certos políticos.
A estimulação artificial das necessidades provoca aberrações do consumo:
- Contamos uma sala completa de som, sem gostar de música;
- Compramos bibliotecas a metro,deixando volumes "virgens"nas estantes;
- Adquirimos quadros famosos, sem saber apreciá-los (ou para mantê-los no cofre).
A obsolescência dos objetos, rapidamente postos "fora da moda", exerce uma tirania invisível, obrigando as pessoas a comprarem a televisão nova, o refrigerador ou o carro porque o design se tornou antiquado ou porque uma nova engenhoca se mostrou "indispensável".
E quando bebemos Coca-Cola porque "É emoção pra valer!", bebemos o slogan, o costume norte-americano, imitamos os jovens cheios de vida e alegria. Com o nosso paladar é que menos bebemos...
Como o consumo alienado não é um meio, mas um fim em si, torna-se um poço sem fundo, desejo nunca satisfeito, um sempre querer mais. A ânsia do consumo perde toda relação com as necessidades reais do homem, o que faz com que as pessoas gastem sempre mais do que têm. O próprio comércio facilita tudo isso com as prestações, cartões de crédito, liquidações e ofertas de ocasião, "dia das mães" etc.
Mas há um contraponto importante no processo de estimulação artificial do consumo supérfluo - notado Não só na propaganda, mas na televisão, nas novelas - que é a existência de grande parcela da população com baixo poder aquisitivo, reduzida apenas ao desejo de consumir. O que faz com que essa massa desprotegida não se revolte?
Há mecanismos na própria sociedade que impedem a tomada de consciência: as pessoas têm a ilusão de que vivem numa sociedade de mobilidade social e que, pelo empenho no trabalho, pelo estudo, há possibilidade de mudança. Ou seja, "um dia eu chego lá"...
E se não chegou, "é porque não tiveram sorte ou competência".
Por outro lado, uma série de escapismos na literatura e nas telenovelas que fazem com que as pessoas realizem suas fantasias de forma imaginária, isto sem falar na esperança semanal da Loto, Sena e demais loterias. Além disso, há sempre o recurso ao ersatz, ou seja, a imitação barata da roupa, da jóia, do bule da rica senhora.
O torvelinho produção-consumo em que está mergulhado o homem contemporâneo impede-o de ver com clareza a própria exploração e a perda da liberdade, de tal forma se acha reduzido na alienação ao que Marcuse chama de unidimensionalidade (ou seja, a uma só dimensão). Ao deixar de ser o centro de si mesmo, o homem perde a dimensão de contestação e crítica, sendo destruída a possibilidade de oposição no campo da política, da arte, da moral.
Por isso, nesse mundo não há lugar para a filosofia, que é, por excelência, o discurso da contestação.

Alienação no lazer

Histórico do lazer

O lazer é criação da civilização industrial, e aparece como um fenômeno de massa com características especiais que nunca existiram antes do século XX.
Antes o lazer era privilégio dos nobres que, nas caçadas, festas bailes e jogos, intensificavam suas atividades predominantemente ociosas. Mais tarde, os burgueses enriquecidos também podiam se dar ao luxo de aproveitar o tempo livre.
Os artesãos e camponeses que viviam antes da Revolução Industrial seguiam o ritmo da natureza: trabalhavam desde o clarear do dia e paravam ao cair da noite, já que a deficiente iluminação não permitia outra escolha. Seguiam o ritmo das estações, pois a semente exige o tempo de plantio, tanto quanto a colheita deve ser feita na época certa. Havia "dias sem trabalho", que ofereciam possibilidade de repouso, embora não muito, pois geralmente os feriados previstos eram impostos pela Igreja e havia a exigência de práticas religiosas e rituais obrigatórios. As festas religiosas ou as que marcavam o fim da colheita eram atividades coletivas e adquiriam importante sentido na vida social.
O advento da era industrial e o crescimento das cidades alteram o panorama. Com a introdução do relógio, o ritmo do trabalho deixa de ser marcado pela natureza. A mecanização, divisão e organização das tarefas exigem que o tempo de trabalho seja cronometrado, e as extensas jornadas de dezesseis a dezoito horas mal deixam tempo para a recuperação fisiológica.
Mas as reivindicações dos trabalhadores vão lentamente conseguindo alguns êxitos. A partir de 1850 é estabelecido o descanso semanal; em 1919 é votada a lei das oito horas: progressivamente a semana de trabalho é reduzida para cinco dias. Depois de 1930, outras conquistas, como descanso remunerado, férias e, concomitantemente, a organização de "colônias de férias", fazem surgir no século XX o "homem -de- após - trabalho". É o início de uma nova era, que tende a tomar contornos mais definidos com a intensificação da automação do trabalho. Estamos nos dirigindo a passos largos para a "civilização do lazer".
No Brasil a legislação trabalhista demorou mais tempo e dependeu da tardia organização sindical, uma vez que também o processo de industrialização brasileiro foi posterior ao dos países mais avançados. Apenas na década de 30, no governo populista de Getúlio Vargas, os trabalhadores conquistaram a regulamentação das oito horas diárias de trabalho e outros benefícios.
A diminuição da jornada de trabalho cria o tempo liberado, que não pode ser confundido ainda com o tempo livre, pois aquele é gasto de inúmeras maneiras:

- No transporte - na maioria das vezes o operário mora longe do local de trabalho;
- Com as ocupações de asseio e alimentação;
- Com sono;
- Com obrigações familiares e afazeres domésticos;
- Com obrigações sociais, políticas ou religiosas;
- Às vezes até com um "bico"para ganhar mais alguns trocados. Isso sem falar no trabalho da mulher, que sempre supõe a "dupla jornada de trabalho".


O que é lazer?

O tempo propriamente livre, de lazer, é considerado aquele que sobra após a realização de todas as funções que exigem uma obrigatoriedade, que sejam as de trabalho ou todos as outras que ocupam o chamado tempo liberado.
O que é lazer, então? Segundo Dumazedier, "o lazer é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora, após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais".
Portanto, há três funções solidárias no lazer:
- Visa o descanso e, portanto, libera da fadiga;
- Visa o divertimento, a recreação, o entretenimento e, portanto, é uma complementação que dá equilíbrio psicológico à nossa vida, compensando o esforço que despendemos no trabalho. O lazer oferece, no bom sentido da palavra, a evasão pela mudança de lugar, de ambiente, de ritmo, quer seja em viagens, jogos ou esportes ou ainda em atividades que privilegiam a ficção, tais como cinema, teatro, romance, e que exigem o recurso à exaltação da nossa vida imaginária;
- Visa a participação social mais livre, e com isso promove o nosso desenvolvimento. A procura desinteressada de amigos, de aprendizagem voluntária, estimula a sensibilidade e a razão e favorece o surgimento de condutas inovadoras.
De tudo isso, fica claro que o lazer autêntico é ativo, ou seja, o homem não é um ser passivo que deixa "passar o tempo" livre, mas empenha-se em algo que escolhe e lhe dá prazer e o modifica como pessoa.
É bom Não reduzir o lazer criativo apenas aos programas com funções claramente didáticas. Podemos assistir ativamente a qualquer tipo de programa quando somos bons observadores, assumindo atitude seletiva, somos sensíveis aos estímulos recebidos e procuramos compreender o que vemos e apreciamos.

O lazer alienado

No mundo em que a produção e o consumo são alienados, é difícil evitar que o lazer também não seja. A passividade e o embrutecimento naquelas atividades repercutem no tempo livre.
Sabe-se que pessoas submetidas ao trabalho mecânico e repetitivo na linha de montagem têm o tempo livre ameaçado pela fadiga mais psíquica do que física, tornando-se incapazes de se divertir. ou então, exatamente ao contrário, procuram compensações violentas que as recuperem do amortecimento dos sentidos.
A propaganda da bem - montada "indústria do lazer" orienta as escolhas e os modismos, manipula o gosto, determinando os programas: boliche, patinação, discotecas, danceterias, filmes da moda.
Até aqui, fizemos referência a determinado segmento social que tem acesso ao tempo de lazer. Resta lembrar que as cidades não têm infra-estrutura que garanta aos mais pobres a ocupação do seu tempo livre: lugares onde ouvir música, praças para passeios, várzeas para o joguinho de futebol, clubes populares, locais de integração social espontânea. Isso torna muito reduzida a possibilidade do lazer ativo, não - alienado, ainda mais se supusermos que o homem se encontra submetido a todas as formas de massificação pelos meios de comunicação.
Vimos que o lazer ativo se caracteriza pela participação integral do homem como ser capaz de escolha e de crítica. Dessa forma, o lazer ativo permite a reformulação da experiência. Tal não ocorre como o lazer passivo, no qual o homem não reorganiza a informação recebida ou a ação executada, de modo que elas nada lhe acrescentam de novo, ao contrário, reforçam os comportamentos mecanizados.
É bom lembrar que o caráter de atividade ou passividade nem sempre decorre do tipo de lazer em si, mas da postura do homem diante dele. Assim, duas pessoas que assistem ao mesmo filme podem ter atitude ativa ou passiva, dependendo da maneira pela qual se posicionam como seres que comparam, apreciam, julgam e decidem ou não.

MARTINS, Maria Helena e ARANHA, Maria Lúcia. Filosofando
Introdução à Filosofia. SP, Moderna, 1993.


A IDEOLOGIA

Concepções de ideologia
O conceito de ideologia tem diversos significados. Por isso é importante verificar em que sentido está sendo empregado dentro de um determinado contexto.
Do ponto de vista teórico, a ideologia pode ser considerada o conjunto de idéias, concepções ou opiniões sobre algum tema sujeito a discussão. Por exemplo, a ideologia da segurança nacional. Ou então, do ponto de vista prático, ideologia significa o conjunto de idéias sistematizadas que orientam determinadas formas de agir. por exemplo, a ideologia de um partido político, a ideologia religiosa ou a ideologia de uma escola.
O filósofo italiano Gramsci, embora reconhecendo também o sentido pejorativo de ideologia que veremos a seguir, dizia ser importante não considerar de antemão toda ideologia como arbitrária e, portanto, inútil para transformar a realidade. Pois há ideologias historicamente necessárias que "organizam as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam etc". Pode-se dar ao conceito de ideologia "o significado mais lato de uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas"e que tem por função conservar a unidade de todo um bloco social.

O sentido negativo de ideologia
Além desses sentidos positivos de conceito de ideologia, existe outro, pejorativo, que indica um conhecimento não-crítico que mascara as formas de dominação existentes na sociedade.
Nas sociedades divididas em classes predomina a separação entre o trabalho intelectual e o manual. Essa situação leva à exploração do trabalho e à alienação, uma vez que os trabalhadores perdem a autonomia.
Ora, é justamente a ideologia que oculta a alienação e impede a mobilização dos trabalhadores contra a imposição dos valores da classe dominante. Sem precisar recorrer à violência física, a ideologia mantém o consenso e a coesão da sociedade, escondendo as distorções e mascarando as desigualdades sociais.

A ideologia é o conjunto de representações e idéias, bem como de normas de conduta, por meio das quais o indivíduo é levado a pensar, sentir e agir da maneira que convém à classe que detém o poder. Essa consciência da realidade é uma falsa consciência, porque camufla a divisão existente dentro da sociedade, apresentando-a como una e harmônica, como se todos partilhassem dos mesmos objetivos e ideais.

Esse conceito de ideologia, inicialmente analisado por Marx, foi incorporado ao pensamento político e econômico até de teóricos não-marxistas, tal sua fecundidade e aplicabilidade em diversos campos de reflexão e ação.
Revendo: a ideologia, no sentido positivo, exerce a função de cimento do grupo social, tornando a sociedade de fato unida em torno de crenças comuns que fazem justamente a força das tradições. No sentido negativo, o que se denuncia é o discurso sobre uma falsa unidade, que esconde a divisão injusta da sociedade.
Examinemos alguns exemplos.
O Trabalhador braçal geralmente é semi-analfabeto por não freqüentar a escola ou abandonar os estudos muito cedo, ganha mal, não tem casa própria, não melhora seu padrão de vida, os filhos reproduzem seus passos.
Em uma interpretação ideológica desse caso, justificaria a situação da seguinte maneira:
ele é um trabalhador braçal porque não tem competência para outro tipo de serviço intelectualizado;
- Não tem bens porque esbanjou o que ganhou, não fez poupança;
- Não melhora o padrão de vida por que não é um bom empregado, aplicado e perseverante.
- Em todo caso, convém não perder as esperanças: um dia a sorte poderá lhe sorrir. E, quem sabe, com esforço, seu filho possa até concluir um curso superior!
Aliás, os exemplos do trabalhador "que se faz por si mesmo"são indevidamente generalizados a fim de provar a mobilidade da sociedade.
No entanto, a exclusão e evasão escolar não ocorrem porque as crianças pobres são pouco inteligentes ou preguiçosas, mas porque o direito à escola é de fato negado a elas. O mesmo acontece com o emprego, a remuneração digna do trabalho, o direito à produção e consumo da cultura, o acesso ao lazer etc. Esses benefícios não atingem todos os segmentos sociais de forma homogênea.
As justificativas ideológicas para essas discrepâncias são todas de cunho individual e não social, como se apenas cada indivíduo fosse o responsável pelo seu próprio destino. Embora seja verdadeiro que as pessoas devem responder por suas escolhas, em sociedades de estrutura injusta as oportunidades oferecidas não são iguais para todos, lançando a grande maioria num "jogo de cartas marcadas"em que as chances de melhorar não dependem de fato dos indivíduos: é difícil competir quando, numa corrida, alguns já têm como vantagem certos privilégios. Com isso, a maior parte dos bens produzidos pela sociedade serão usufruídos apenas por uma minoria.
Ao impor os valores da classe dominante, tornados universais, o discurso ideológico impede que o oprimido tenha a sua própria visão de mundo. o que não significa que alguns conheçam a realidade e a maior parte se encontre "enganada" pela ideologia. Também a classe privilegiada considera natural a sua dominação. Aliás, faz parte da ideologia "naturalizar" as ações humanas, e explicando-as como decorrentes da "ordem natural das coisas" e não como o resultado da injusta repartição dos bens.
A ideologia é disseminada pelos mais diferentes meios: família, escola, empresa, Igreja, quartel, meios de comunicação de massa, que são responsáveis pela sua produção.
Como superar a ação da ideologia?

A contra-ideologia
Retomando nosso percurso: o senso comum, por ser ingênuo e acrítico, geralmente se encontra permeado pela ideologia. A sua superação exigiria trazer à tona o que ela esconde, quebrando a rigidez das "verdades indiscutíveis". Para tanto, deveremos compreender o saber como um processo - um constante movimento entre o pensar e o agir - e não uma coleção de verdades "acabadas" vindas não se sabe de onde.
A fim de oferecer condições para que o senso comum desenvolva seu núcleo sadio, que é o bom senso, torna-se necessário multiplicar os espaços possíveis em que as contradições sociais sejam bem compreendidas, o que pode ser feito nos mesmos locais em que a ideologia se dissemina, ou seja, na família, na escola, na empresa, e assim por diante. A contra-ideologia é possível porque nada atua de forma mecânica de modo a impedir qualquer reação; caso contrário, não se poderia falar propriamente em liberdade humana!

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires
Temas de Filosofando. SP, Moderna, 1998

A DISCRIMINAÇÃO

Preconceito
É impossível encontrar alguém que não tenha preconceito algum, já que internalizamos sem perceber muito de nossa herança cultural, geralmente carregada de formas sutis de recusa aos diferentes.

Preconceito (pré-conceito) significa conceito (ou opinião) formado antecipadamente, sem adequado conhecimento dos fatos.

Os antropólogos nos ensinam que, ao avaliarmos os costumes de outros povos, temos a tendência de partir de nossos valores culturais, o que representa uma atitude etnocêntrica. Quanto isso acontece, correremos o risco de procurar neles “o que lhes falta” e esquecermos de ver com clareza o que eles são de fato.
O perigo do preconceito está na incapacidade de reexaminar as convicções quando se tornam dogmáticas. Neste ponto, o preconceito é fonte de intolerância, e portanto de violência. O preconceito leva à discriminação quando os diferentes (tais como pobres, negros, homossexuais, mulheres, idosos, pessoas com necessidades especiais e tantos outros) são considerados inferiores e excluídos dos privilégios desfrutados por aqueles que se consideram “melhores”.
A origem da discriminação, seja ela de raça ou gênero, geralmente é conseqüência da desigualdade social. Desde a antiguidade grega, em toda a história do mundo ocidental, o poder é branco, masculino e adulto.
Vamos então examinar algumas formas de não-aceitação da diferença: o racismo e o machismo.

O racismo
O índio

Para analisar o problema do racismo no Brasil, desde o seu início, precisamos lembrar que a colonização das Américas remonta à necessidade de expansão comercial da burguesia enriquecida pela Revolução Comercial. As colônias representavam, portanto, não só maior possibilidade de consumo, como também a condição de fornecimento de produtos tropicais e metais preciosos indispensáveis à expansão capitalista.
O processo de cristianização dos índios, empreendido pelos primeiros jesuítas que aqui chegaram, facilitou a política de dominação da metrópole. Mesmo se considerarmos não ter sido essa a intenção dos missionários, imbuídos de ardor religioso, eles foram vítimas de avaliações etnocêntricas, convencidos da superioridade da sua cultura e religião. Ao “docilizarem” os índios, adequando-os a padrões estranhos, deram início a desintegração da cultura indígena.
Os colonizadores, usando de violência física, dizimaram as tribos indígenas e escravizaram os que puderam. Apesar disso, geralmente são enaltecidos nos relatos da história oficial como valentes desbravadores do sertão e conquistadores que “levaram o progresso às terras bárbaras”.
Em pleno século XX, apesar da contribuição da antropologia e da etnologia, continua a violência contra os índios, expulsos dos seus territórios ou aculturados de maneira inadequada por motivos os mais diversos: construção de estradas, instalação de fazendas, garimpo etc.

O Negro
A origem do preconceito contra o negro se acha na tradição da escravidão. Para conciliar o absurdo da dominação com a tradição cristã, os senhores de escravos acalmavam sua consciência convencendo-se de que o negro era semi-animal, bruto e rebelde, exigindo pulso forte por parte do dominador.
Por resistir furiosamente ao trabalho escravo, o negro passou a ser avaliado mediante estereótipos: seria indolente, malandro, cachaceiro. Ou seja, a situação subumana dos escravos é compreendida a partir de uma inversão típica da ideologia: em vez de entender a inferiorização do negro como conseqüência da dominação, esta é justificada porque o negro é considerado um ser inferior.
O próprio negro interioriza a concepção do branco, o que dificulta a afirmação de sua identidade a partir de sua consciência étnica. Daí os desvios de comportamento quando, ao desejarem se integrar no mundo dos brancos, representam papéis reforçadores da exclusão, agindo de acordo com padrões “brancos”. É nessa linha que ouvimos falar em “negros de alma branca” e na exaltação do “negro humilde” em contraposição ao “negro pernóstico” que “não reconhece seu lugar”.
Ao contrário dos EUA ou da África do Sul, países em que o racismo é explícito, os brasileiros camuflam o preconceito por meio do “mito da democracia racial”. Em última análise, essa atitude até prejudica o equacionamento do problema e a luta organizada das vítimas do preconceito.

O migrante
Preconceito e discriminação não atingem apenas o índio e o negro, vítimas do estigma da escravidão. Em um país como o Brasil, com desenvolvimento irregular nas diversas regiões, o Sul e Sudeste constituem o espaço do progresso e da riqueza, onde se instalam as indústrias, a pecuária e a agricultura planejada. Por motivos histórico-sociais que não cabe examinar aqui, outras amplas regiões como o Norte e o Nordeste permanecem empobrecidas. No caso do Nordeste o fato se agrava, pois o sertão é periodicamente assolado pela seca e pela fome, o que obriga seus habitantes à contingência da migração para o sul, na esperança de dias melhores.
Desenraizados de sua cultura, desadaptados nos grandes centros urbanos, esses migrantes mal conseguem sobreviver em funções subalternas, enfrentando o desemprego e as dificuldades de moradia. Em contraposição, os habitantes do “Sul - Maravilha” aproveitam essa mão-de-obra barata, desqualificada, e ainda discriminam esses que são chamados genérica e pejorativamente de “baianos” e “paraíbas”.
Ao lado da zombaria a que muitas vezes são submetidos, também vemos com temor aparecimento de grupos racistas que pretendem intimidar os migrantes pela violência. Esse fenômeno não se restringe ao Brasil. Presenciamos na Europa o renascimento dos grupos neonazistas desejos de expulsar os imigrantes que saem de seus países pobres em busca de melhores empregos nas regiões mais opulentas. Também nos EUA tem ocorrido fenômeno desse tipo.

O Machismo
Dissemos que o poder é branco, masculino e adulto. Portanto, uma das características da nossa civilização é ser androcêntrica, ou seja, centrada na figura masculina. Os direitos, deveres, aspirações e sentimentos das mulheres se acham há tempos (calculam-se seis milênios!) subordinados aos interesses do patriarcado, isto é, ao sistema de relações sociais que garantem a dependência da mulher em relação ao homem.
Geralmente as formas de dominação se impõem pela “naturalização”, que considera como naturais certas características que na verdade foram construídas a partir das relações sociais. Nasce o “mito da feminilidade”, que atribui à “natureza feminina“ certa virtudes e defeitos “próprios” da mulher: por um lado, ela seria sensível, amorosa, altruísta, maternal, intuitiva, e, por outro, frágil, dependente, sem iniciativa, instável, deixando-se levar pela emoção, ao mesmo tempo que volúvel, dissimulada e perigosa.
Todas as vezes que procuramos definir o “ser-em-si”, tal como a “natureza da mulher”, a “natureza do homem, a ”natureza da criança”, corremos o risco de forjar estereótipos, formas simplificadas, redutoras e empobrecidas de compreender a existência humana. Os estereótipos da feminilidade geralmente resultam da atitude preconceituosa com relação à mulher e contribuem para sua discriminação. O estereótipo da feminilidade acentua a situação de dependência e infantiliza a mulher vista como ser relativamente incapaz.
Na história de todas as culturas, ela se acha confinada ao lar, subordinada ao pai e depois ao marido, ocupando-se de tarefas domésticas tais como gerar e educar os filhos, cuidar da alimentação e manutenção da casa, sem nunca se afastar dos domínios do lar.
Talvez esse esboço da situação feminina possa parecer superando nas grandes cidades, onde a mulher conquista espaços nos mias diversos campos de trabalho, e vem garantindo a sua autonomia. Ainda assim, o processo de emancipação não se completou também nesses centros avançados, não penetrou no campo e nem atingiu muitas regiões do globo. Mesmo onde a liberação parece consolidada, persistem formas sutis de dominação. A mulher que trabalha fora, por exemplo, arca com a dupla jornada de trabalho, uma vez que as tarefas domésticas são consideradas “naturalmente” incumbência feminina. A própria mulher assume as prerrogativas dessa “natureza feminina” quando, ao se profissionalizar, sente-se culpada por não se desincumbir bem dos serviços domésticos em virtude das novas funções assumidas fora de casa.
Além disso, sabemos que as mulheres são discriminadas profissionalmente, recebem remuneração abaixo da dos homens para serviços idênticos, são preteridas em cargos de chefia e constantemente excluídas da vida política.
Quando a duras penas conquistam posição na política, com freqüência ocorre a confusão entre o público e o privado, ou seja, as pessoas não separam a figura pública da deputada, senadora ou ministra da figura de mãe mulher ou amante. Os mexericos envolvendo a vida íntima e até mesmo pessoal da mulher, adquirem tal dimensão que chegam a comprometer os critérios de avaliação do seu desempenho profissional, como se fosse preciso vender o próprio corpo em troca de uma melhor posição social!
Podemos dizer que o processo de emancipação feminina é a grande e principal revolução do século XX, e a que mais fundamentalmente vem subvertendo a ordem do mundo. Reconhecer que a mulher é um ser humano integral e que, apesar de diferente do homem, pode convivem com ele muito além da relação de mando e obedi6encia, abre caminho para uma humanidade mais justa (e, por que não, mais feliz?), em que a amizade, ou o próprio amor, poderá prevalecer sobre a hierarquia.

Racismo, patriarcado, capitalismo.
O racismo e o patriarcado são formas de dominação antigas, mas com o surgimento do capitalismo no século XVI deu-se a integração desses três sistemas de exploração. Relaciona-los nos permite compreender melhor que não vivemos em uma sociedade igualitária, mas dividida, hierarquizada, que separa “inferiores” e “superiores” a partir de critérios que precisam ser desmistificados.
Segundo a socióloga Heleieth Saffioti, esses três sistemas de dominação (racismo, patriarcado e capitalismo) estabelecem uma simbiose, uma associação, de tal forma que “é praticamente impossível afirmar que tal discriminação provém do patriarcado, ao passo que outras se vinculam ao sistema de classes e/ou ao racismo”.
Se considerássemos, por exemplo, só o patriarcado, as mulheres trabalhariam fora de casa, mas as necessidades criadas pelo advento do capitalismo as levaram para atividades nas fábricas. Por outro lado, o machismo da sociedade patriarcal se manifesta quando a operária não é considerada igual ao ser companheiro de trabalho, é discriminada no salário, na participação sindical, na determinação das tarefas consideradas femininas.
Da mesma forma, entre os homens existe a discriminação dos negros, mulatos, índios e migrantes. Na “ordem das bicadas” (para lembrar a seleção feita nos galinheiros), a mulher negra e pobre ocupa a última posição. E, por fim, o trabalhador em geral (seja branco, negro, homem ou mulher) se encontra inferiorizado na relação patrão-empregado, conforme a típica divisão de classes do mundo capitalista.
Por isso, não é possível combater apenas uma forma de dominação sem levar em conta as outras duas. Ao contrário, a ação simultânea contra o poder arbitrário em cada um dos três sistemas, constitui a condição para se tentar construir a sociedade democrática, em que ninguém seja considerado superior devido à cor, ao sexo ou às posses.

Conclusão
Muitas das discussões desenvolvidas neste capítulo são decorrentes de pesquisas realizadas nos campos das ciências sociais e da psicologia, dando subsídio para a reflexão filosófica a respeito da natureza das formas arbitrárias de exercício de poder, para que possamos projetar um futuro melhor para a humanidade: se constatamos o que é e como é, torna-se possível pensar como deveria ser. E não apenas pensar, mas descobrir meios de possibilitar a integração dos excluídos, bem como o combate à discriminação. A utopia, no sentido positivo, é o ainda-não que poderá vir-a-ser.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires.
Temas de Filosofando. SP, Moderna, 1998.

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